A Psicologia do Vinho.


  Na minha casa abrimos vinhos todos os dias. Minha tia gosta dos De Mesa portugueses, meu vô dos Malbecs argentinos, minha vó só Mateus Rosé, minha mãe e o Zó apreciam tudo que não seja chileno e minha namorada, Colheitas Tardias. Eu tenho minhas preferências pelos Dãos portugueses mas, acima delas, guardo minhas anotações. Trata-se de uma caderneta onde tenho registrado todos os vinhos que já bebi, com quem bebi, onde eu estava, o preço e o que achei do gosto. Depois de uns anos, o que era apenas uma documentação, virou um diário com partes muito importantes da minha história.
  Pensando nisso fui fazendo umas relações. Uma coisa que me surpreendeu muito quando aprendi, é que todas as uvas, por sob a casca, são brancas. O que faz um vinho ser tinto, branco ou rosé é o que se faz após o desengace (esmagamento). Mantendo o contado deste mosto (uva amassada) com uma casca vermelha, o vinho torna-se gradativamente tinto. O Rosé surge ou com mistura de cascas brancas e vermelhas, ou com pouco contado apenas de cascas vermelhas. Assim como as uvas sem casca, são os acontecimentos na nossa vida, neutros. Ambos são matéria prima de história e memória, mas em nada ainda se assegura qualquer qualidade ou benefício. A maneira como lidamos hoje com um acontecimento é o que decidirá sua qualidade dali alguns anos.
  No Mundo Novo (Américas, Austrália, África do Sul e Ásia), por não ter tanta tradição em vinicultura, o nome das uvas vem em grandes letras no rótulo. E erroneamente há quem ache que isso certifica alguma qualidade. Nenhum vinho é bom só por ser um Cabernet Sauvignon, por exemplo.. Isso é só o nome da casta dessa uva. É tão louco quanto dizer que um queijo é bom só porque é mozzarella! E dessa mesma maneira muitas vezes agimos em nossas vidas. Colocamos a expectativa em algo apenas aparente e potencial. Temos a expectativa de que “fazendo com a uva certa, dará certo”. Então casamos com a pessoa que “faz sentido”, escolhemos a carreira que “é a boa”, agimos da maneira que “é mais garantida”.. Mas não é isso. Não existe “uva mágica”. No Mundo Velho (França, Portugal, Itália e Alemanha), o que se sobressai no rótulo é o nome da família, eles nem falam qual uva é. Ou seja, aqueles que entendem do assunto há séculos, perceberam que o importante é o “método”, o “manipular”, o “tratamento que se aplica”. Isso! O que transforma nossos acontecimentos rotineiros em boas memórias não é “o que foi ganho”, “quanto custou”, “quantas pessoas vieram”,  “o que foi conquistado”, mas sim “quem estava comigo”, “o que gerou em mim”, “qual será a maneira que eu tratarei estes ocorridos para fazer com que amadureçam em mim de modo a gerarem taninos equilibrados na boca daqui alguns anos?” É disso que eu estou falando... Existem vinhos horríveis feitos de uva Chardonnay, que é a rainha das uvas brancas! E é da casta Vinhão, “subespécie” de uva, que se tira o tradicional Casal Garcia português. A maneira como lidamos com as uvas.. A mentalidade com a qual entendemos nossos acontecimentos –sejam eles Ferraris ou picolés, Chardonnays ou Aragonesas- é o que determina o gosto de nossas memórias no futuro.
  Um erro que eu já cometi muito é pensar que “quanto mais velho, melhor o vinho”. Errado! Assim como as lembranças, existem aquelas para serem consumidas logo e terminarem, e aquelas que devem perdurar para amadurecerem e nos darem mais gosto com o tempo. Para os chamados Vinhos de Guarda durarem 50, 100 anos, são necessários enormes cuidados desde o plantio até o armazenamento! O mesmo com as lembranças. Aquelas que queremos manter por mais tempo, devem ser “tratadas” desde antes. Devem estar devidamente resolvidas para que, com o tempo, não venham nos azedar ao vinagre (vinho + agre, azedo), mas enriquecer um jantar sempre que lá na frente vierem à mesa. E o cuidado continua no “manter”, na atenção com a temperatura, umidade, iluminação.. Lembranças também precisam de manutenção para não virarem uma mentira, como os vinhos mal guardados.
  Tenho um romantismo especial ao falar dos Vinhos Regionais. São vinhos que têm como prioridade manter as características de determinado lugar. Mais do que entrar nos padrões mundiais, preferem representar a geografia, clima e solo de sua origem (terroir). São lindos e fazem todo o sentido! Essas são as lembranças específicas de determinadas fases nossas. Escola, relacionamentos, viagens, trabalhos e, porque não dizer, perdas e desilusões. A verdade é que nem todos os vinhos regionais são bons... Mas ainda existem os “forasteiros” e “descaracterizados”! São vinhos como os famosos Supertoscanos que, modificados artificialmente para se enquadrarem ao mercado, são estranhos aos seus conterrâneos! Fazem sentido para fora, mas internamente são mentirosos, ainda que muitas vezes saborosos... Estes me fazem lembrar os Vinhos Fortificados, aos quais são adicionados aguardente vínica (ou outro destilado) e isso gera um novo vinho, não-regional. Embora tenham bons representantes, como Vinho do Porto ou o Jerez Espanhol, eles me remetem àquelas coisas que eu guardei mas dei uma inventada antes e hoje não sei ao certo como aconteceu. São coisas que inventei para evitar talvez um desconforto, e claro que ficaram deliciosas, mas não me representam.. Essas lembranças exigem parcimônia. São gavetas nossas que devem ser abertas com inteligência e moderação, talvez por isso sejam vinhos tomados em pequenos cálices ao invés de grandes taças.
  Outra informação que nem todos sabem é que nenhum vinho é de uma cepa só. Não existe um vinho só de uvas Merlot, ou que contenha apenas Carmenérè. Simplesmente porque foram horríveis as tentativas! Mesmo os Varietais mais conservadores utilizam por volta de 85% de uma mesma variedade no máximo. E a vida é exatamente assim! Precisamos dos temperos, dos equilíbrios e das nuances. Só os dias tristes nos fazem valorizar os dias de glória! A riqueza das matizes, a elegância e originalidade dos entretons.. a mistura de uvas e de sentimentos é o gera história.
  Conheço quem não goste de abrir um vinho quando está só, mas acho que algumas “revivências” convém tão somente a mim, no banho por exemplo. Acho saudável reaver algumas situações mentalmente. Faz parte daquela manutenção à qual já mencionei. Me ajuda no autoconhecimento do meu Eu atual. Talvez este receio seja por conta das infindáveis percepções que um vinho pode oferecer para além dos 4 gostos, as Notas. No incontável leque das possibilidades de uma degustação, por vezes um mesmo vinho tem diferentes interpretações. Cada pessoa enxerga e guarda um evento de acordo com a sua visão, é o seu ponto de vista. Existem vinhos secos como os Bordeaux, Suaves como um abraço, de taninos vivos como uma pizzada em amigos, Fortificados como uma despedida, Doces como um retorno, ou Regionais como um almoço de domingo.. Vou lembrando de tanta coisa que prefiro parar por aqui, com talvez a frase mais bela já dita à mesa: “Bebam, em memória de mim, Amém”.


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4 comentários:

  1. Talvez este seja o seu melhor texto.
    Complexo na estrutura, digamos que nos leva a um sentimento em espiral.
    Mas o 'grand finale' o deixou ainda mais precioso porque foi simples de assimilar.
    Deu ao leitor, aquela vontade de abrir uma garrafa de vinho e brindar com você.

    Um primor, pequeno poeta. Um primor.

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  2. Parabéns pelo seu dom e talento!
    Seus textos são admiráveis!
    Penetram as entranhas da alma e saboreamos a capacidade de mergulhar no mundo chamado mente!

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  3. Melhor texto seu que li até hoje.

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